Talvez estejamos vivendo a situação do elefante, em que Drummond amava se disfarçar, que saía à procura “de seres e situações patéticas, encontros ao luar no mais profundo oceano”; mas se queixava de que não o queriam ver, nem ouvir, pois “os homens só ousam mostrar-se à pálpebra cerrada, sob a sombra das cortinas”.
Reconhecendo a frustração de sua tentativa, o poeta, disfarçado de elefante, recomenda-nos o que fazer, apesar das dificuldades, resistências, limitações e da natureza interminável de nossa tarefa: “amanhã recomeço”.
Referências Bibliográficas:
DRUMMOND DE ANDRADE, C. (1956). 50 Poemas, Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro.
O Elefante
Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos moveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
e é a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.
Eis meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê nos bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa as formas naturais.
Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há na cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.
Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.
E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
e as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo
disfarçar-me
exausto de pesquisa
caiu-lhe o rastro e genho
como simples papel
a cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete
qual mito desmontado.
Amanhã, recomeço...
Carlos Drummond de Andrade
http://letras.terra.com.br/carlos-drummond-de-andrade/1005565/
http://www.novasaquarema.com.br/poiesis/80/drummond02.htm
http://www.psiquiatriageral.com.br/educacaomedica/profissao_impossivel.htm
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